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Identificação de um caso de febre hemorrágica brasileira no estado de São Paulo, janeiro de 2020
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Identificação de um caso de febre hemorrágica brasileira no estado de São Paulo, janeiro de 2020

Matéria enviada pelo Dr. Marcelo Wada

Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS); Departamento de Imunização e Doenças Transmissíveis (DEIDT/SVS); Departamento de Saúde Ambiental, do Trabalhador e Vigilância das Emergências em Saúde Pública (DSASTE/SVS); Departamento de Articulação Estratégica de Vigilância em Saúde (DAEVS/SVS); Coordenação-Geral de Vigilância de Zoonoses e Doenças de Transmissão Vetorial (CGZV/DEIDT/SVS); Coordenação-Geral de Emergências em Saúde Pública (CGEMSP/DSASTE/SVS); Coordenação-Geral de Laboratórios de Saúde Pública (CGLAB/DAEVS/SVS); Coordenadoria de Controle de Doenças, Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (CCD/SES/SP): Centro de Vigilância Epidemiológica (CVE/CCD/SES/SP); Instituto Adolfo Lutz (IAL/CCD/SES/SP); Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina USP (HCFMUSP); Laboratório de Técnicas Especiais do Hospital Israelita Albert Einstein (LATE-HIAE); Conass; Conasems; Opas*.

Antecedentes Em 17 de janeiro de 2020, a Secretaria de Vigilância em Saúde recebeu, às 14h08, a notificação de um caso confirmado para o gênero Mammarenavirus, com aproximadamente 90% de similaridade com a espécie Sabiá.

Trata-se de um indivíduo adulto, procedente de Sorocaba/SP. O relato encaminhado ao Ministério da Saúde apresentou a seguinte descrição: paciente iniciou sinais e sintomas em 30/12/2019, com quadro de odinofagia, dor epigástrica, associado com náuseas, vertigem, xerostomia e mialgias.

Evoluiu com mialgia em membros, seguida de dispneia, febre alta (39o C), sonolência, hipotensão, confusão mental, conjuntivite bilateral, exantema difuso, agitação psicomotora, manifestação hemorrágica, rebaixamento de nível de consciência, falência multissistêmica com evolução para óbito em 11/01/2020.

Entre o início dos sintomas e o óbito, o paciente foi atendido por pelo menos três estabelecimentos de saúde entre os municípios de Eldorado, Pariquera-Açu e São Paulo, sendo o último o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP).

Nos exames complementares observou-se: intensa leucopenia, leve plaquetopenia, níveis elevados de creatinofosfoquinase, bilirrubina e aminotransferases (transaminases), tempo de protombina (TP) normal e tempo de tromboplastina parcial ativada (TTPA) alterado.

O resultado da metagenômica viral realizada pela equipe do Laboratório de Técnicas Especiais – LATE do Hospital Israelita Albert Einstein identificou um novo vírus do gênero Mammarenavírus, da família Arenaviridae, ainda sem espécie definida (genbank: MN956773 e MN956774).

Posteriormente, o Laboratório de Investigação Médica do HCFMUSP também confirmou o mesmo agente através de metagenômica viral e o Instituto Adolfo Lutz após amplificação de RNA viral por RT-PCR.

Febres hemorrágicas virais As febres hemorrágicas provocadas por vírus são um grupo de doenças de origem zoonótica, caracterizadas por febre e manifestações hemorrágicas que podem apresentar extrema gravidade e alta letalidade1,2. São doenças que apresentam uma distribuição mundial, causadas por um RNA vírus de fita simples de 6 famílias: Flaviviridae (febre hemorrágica de Omsk, febre da floresta de Kyasanur, dengue hemorrágico/ síndrome de choque do dengue e febre amarela), Nairoviridae (febre hemorrágica do Congo e da Criméia), Phenuiviridae (febre do Vale Rift), Hantaviridae (febre hemorrágica com síndrome renal por hantavírus e síndrome pulmonar e cardiovascular por hantavírus), Arenaviridae (febres hemorrágicas dos vírus Junin, Machupo, Guanarito e Sabiá na América do Sul e do vírus Lassa na África) e Filoviridae (febres hemorrágicas dos vírus Marburg e Ebola)1

Mammarenavirus

A família Arenaviridae é classificada em 3 gêneros: Mammarenavirus (infecta mamíferos), Reptarenavirus (infecta répteis) e Hartmanivirus (infecta répteis). O gênero Mammarenavirus é subdividido em dois grupos, o do Velho Mundo e do Novo Mundo, que contém 35 espécies diferentes. Nesse informe, destacaremos os arenavírus do Novo Mundo já identificados na América do Sul, causando febre hemorrágica viral em humanos2-5:   Vírus Junin (na Argentina);  Vírus Machupo e Chapare (na Bolívia);   Vírus Guanarito (na Venezuela);   Vírus Sabiá (no Brasil).

Histórico da febre hemorrágica por arenavírus no Brasil

Na literatura há descrição de 4 casos humanos de febre hemorrágica brasileira provocados pelo gênero Mammarenavirus. O primeiro caso ocorreu por infecção natural, ou seja, a partir de um reservatório, na década

de 1990 no estado de São Paulo e deu a origem a um segundo caso que ocorreu em ambiente laboratorial ao processar amostra do primeiro caso6,10. O primeiro caso era uma mulher, de 25 anos, que relatou viagem para o município de Cotia no estado de São Paulo, 10 dias antes ao início dos sintomas. Após o óbito, foi identificado por meio de testes imunológicos e virológicos que se tratava de um novo vírus, da família Arenaviridae, denominado de vírus Sabiá, devido o nome do bairro onde a paciente provavelmente se infectou6 . O segundo caso, foi um técnico de laboratório de 39 anos, que foi infectado acidentalmente, durante o processamento da amostra clínica do primeiro caso. Esse caso sobreviveu e a confirmação foi comprovada por meio da soroconversão para o vírus Sabiá em sorologia pareada6,10. Há um terceiro relato de caso de vírus Sabiá, porém ocorrido em ambiente laboratorial dos Estados Unidos, em um virologista que provavelmente se infectou durante procedimentos laboratoriais7 . O quarto caso de vírus Sabiá descrito na literatura ocorreu em 1999 por infecção natural. Trata-se de um paciente de 32 anos, do sexo masculino, operador de máquina de grãos de café, residente de área rural do Espírito Santo do Pinhal no estado de São Paulo. Após 7 dias de hospitalização, o paciente evoluiu para óbito15. Além desses casos com características clínicas hemorrágicas, há descrição de um caso adicional de infecção laboratorial com o arenavírus flexal. Neste caso, a paciente apresentou febrícula por várias semanas, mal-estar, astenia e intensa queda de cabelo. A recuperação foi completa, inclusive com recuperação do volume do cabelo11.

Reservatórios

Os roedores silvestres cronicamente infectados podem eliminar o vírus por toda a vida. Acredita-se que a manutenção dos Mammarenavirus pode ocorrer por:

Transmissão vertical, ou seja, da mãe para o filhote;   Pelo contato próximo entre os roedores, brigas, acasalamento;   Aerossóis. Via de transmissão As pessoas contraem a doença principalmente por meio da inalação de aerossóis, formados a partir da urina, fezes e saliva de roedores infectados1 . A transmissão dos arenavírus de pessoa a pessoa pode ocorrer quando há contato muito próximo e prolongado ou em ambientes hospitalares, quando não utilizados equipamentos de proteção, por meio de contato com sangue, urina, fezes, saliva, vômito, sêmen e outras secreções ou excreções1,3. Procedimentos de geração de aerossóis, como intubação orotraqueal, ventilação mecânica não invasiva e aspiração das vias aéreas superiores, também estão envolvidos na transmissão de humano para humano. Eventualmente, pode ocorrer transmissão ao homem por contato direto com roedores, por meio de mordeduras.

O período de incubação, ou seja, período que compreende entre a exposição do vírus até o início dos sintomas, geralmente é de 6 a 14 dias, podendo variar de 5 a 21 dias.

Sinais e sintomas

Os arenavírus causam uma síndrome febril hemorrágica, cujo período de incubação é longo (em média entre uma semana e mais de um mês). A doença inicia com uma febre, mal-estar, dores musculares, dor epigástrica e retro-orbital, dor de cabeça, tonturas, sensibilidade à luz e constipação.

Com a evolução da doença pode haver comprometimento neurológico. A doença normalmente cursa entre 6 a 14 dias. A doença evolui com manifestações neurológicas e grave comprometimento hepático resultando em hepatite, podendo o paciente apresentar prostração extrema, dor abdominal, hiperemia conjuntival, rubor em face e tronco, hipotensão ortostática, hemorragia petequial, conjuntival e outras mucosas, hematúria, vesículas em pálato, linfadenopatia generalizada e encefalite. Devido à síndrome de extravasamento capilar, o paciente pode apresentar pulso fino e choque, acometimento pulmonar e edemas, principalmente em face e região cervical, além de elevação do hematócrito, leucopenia com linfocitopenia e trombocitopenia. O acometimento neurológico produz hiporreflexia, tremores e outras alterações do sistema nervoso central (SNC) como meningite e encefalopatia.

Diagnóstico O diagnóstico laboratorial específico para Arenavírus inclui as seguintes técnicas:

Isolamento viral em cultura de células e camundongos recém-nascidos;

Detecção do genoma viral através das técnicas de RT-PCR convencional e em tempo real;

Sequenciamento parcial ou total do genoma viral;

Detecção de anticorpos da classe IgM pelo Ensaio Imunoenzimático (ELISA).

É importante lembrar que os Arenavírus são agentes infecciosos classificados como nível de biossegurança 4 e, portanto, o cultivo e isolamento viral tem que ser realizado apenas em laboratórios de Nível de Biossegurança 4 (NB4).

Diante da avaliação crítica em relação à Biossegurança e Biocontenção, o Instituto Evandro Chagas/SVS/MS (Laboratório de Referência Nacional para Febres Hemorrágicas Virais) poderá realizar apenas o diagnóstico molecular através do RT-PCR convencional e o sequenciamento do genoma viral, uma vez que possui um Laboratório de Nível de Biossegurança 3 (NB3), com aporte de uma cabine de segurança Classe III (que são normalmente usadas em laboratórios NB4) e profissionais de saúde com treinamentos específicos para a realização desses exames.

Procedimentos para diagnóstico laboratorial

  1. Coleta

A coleta de amostras de pacientes suspeitos de infecção por Arenavírus, com ou sem manifestação de quadro clínico compatível com síndrome hemorrágica, deve ser realizada por equipe devidamente paramentada com os Equipamentos de Proteção Individual (EPI), ou seja, máscara N95, avental descartável e luva de procedimento. Todo EPI deve ser descartado em lixo infectante logo após A coleta da amostra deve ser realizada de modo asséptico e somente após a disponibilidade da caixa de transporte adequada – Categoria A UN/2814, seguindo a Instrução de embalagem 620 (PI 620) (ANVISA, 2015).

  1. Tipo de amostra

Deverão ser colhidos 4 tubos secos estéreis, sem aditivos, com 5 ml de sangue para investigação etiológica. Não é necessário separar o soro do sangue, procedimento que pode aumentar significativamente o risco de infecção acidental. É obrigatório o uso de sistema de coleta de sangue a vácuo com tubos plásticos secos estéreis selados para o diagnóstico etiológico. Nos casos de óbitos em que não se tenha obtido o sangue, deve-se optar pela biópsia de fígado, baço, rim, coração, cérebro, a ser acondicionado em tubo plástico, tipo falcon, 50ml, estéril, resistente à temperatura ultra baixa, adotando-se os mesmos cuidados de biossegurança estabelecidos nesse documento. Os fragmentos deverão ser coletados em até 8 horas do óbito. A necropsia não deverá ser realizada.

  1. Transporte de amostra

O material biológico (sangue ou tecidos) deve ser transportado observando-se a regulamentação sanitária vigente para o transporte de material biológico humano (RDC 20/2014 ANVISA), bem como as orientações técnicas do “Manual de Vigilância Sanitária sobre o Transporte de Material Biológico Humano para fins de Diagnóstico Clínico” (ANVISA, 2015). Imediatamente após a coleta, as amostras devem ser acondicionadas em caixas triplas destinadas a substâncias infecciosas Categoria A UN/2814, preservadas com gelo seco e enviadas para o Laboratório de Referência Nacional em Arboviroses e Febres Hemorrágicas do Instituto Evandro Chagas (IEC/SVS/MS), em Ananindeua-PA. A comunicação entre a Coordenação de Vigilância Epidemiológica Local, despachante autorizado e Laboratório de Referência de destino deve observar a normatização sanitária para transporte de substâncias infecciosas, a urgência da expedição da amostra e a segurança nos procedimentos de expedição.

As substâncias infecciosas da categoria A só podem ser transportadas em embalagens que atendam às especificações da classe 6.2 das Nações Unidas e estejam em conformidade com a Instrução de embalagem PI 620.

Tratamento

O tratamento é de suporte conforme a sintomatologia do paciente. Tem-se utilizado a ribavirina para o tratamento de casos provocados pelo vírus da febre do Lassa, sendo mais eficaz quando aplicada precocemente. Acredita-se que outros arenavírus também são sensíveis a esse antiviral3 . Na suspeita de um caso, favor entrar em contato com CIEVS local e nacional para orientação e disponibilização da medicação.

Orientações aos profissionais de saúde

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